O Salmo do Rei
Por: Jesse Silva
O jovem pastor de ovelhas está assentado em seu tamborete feito de madeira de cedro e forrado com pele de urso que ele usava sempre que estava em casa. Dedilhando sua harpa, buscava encontrar uma nova melodia enquanto relaxava o magrelo corpo após um longo dia de trabalho. O rapaz apreciava a quietude do lugar onde morava com sua mãe e as duas irmãs. Ele havia deixado seus ajudantes de pastoreio no aprisco aquela noite. Resolveu dormir em casa já que seu turno seria apenas no dia seguinte.
Enquanto tentava entender o céu ornamentado de estrelas, lua, e nuvens inquietas ele esperava ansioso pelo jantar que as mulheres preparavam atrás
da tenda. O cardápio daquela noite era o seu prato predileto: Carne de carneiro assada com lentilhas e milho maduro. Sabendo que poderia ser interrompido a qualquer momento pelos gritos histéricos de Abigail, a irmã mais velha que tinha um grito agudíssimo capaz de ser ouvido a distâncias consideráveis o rapaz buscava alguma inspiração aproveitando a calmaria e a natureza que o cercava. No entanto, seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho do rangido da porteira que abriu-se repentinamente e logo em seguida o moço pode ouvir as vozes de dois rapazes que chegam correndo e se apresentam diante dele, ofegantes, tentando dize-lhe algo:
“Seu pai, nosso senhor, pediu-nos que viéssemos avisa-lo que se apresente diante dele sem demora…” – Falou o primeiro menino tentando recuperar o fôlego.
O segundo moço tentar completar o recado:
“E não se demore! Seu pai mandou dizer-lhe que a ocasião é de muita importância e sua presença é necessária. Pediu-lhe que coloque sua melhor roupa porquê se trata de um jantar oferecido ao sacerdote Samuel. Toda a família estará reunida e sua presença se faz necessária.
O pastor surpreendeu-se com a intimação de última hora e procurou organizar os pensamentos que agitavam-se como um vespeiro dentro de sua cabeça.
Jamais havia pensado na possibilidade de um dia ser chamado às pressas para se apresentar na “Casa Grande” onde morava a família de seu pai; nunca imaginou que seria chamado com tanta urgência, principalmente sabendo da presença do profeta.
A conversa foi ouvida por Zeruia, a irmã mais nova do rapaz que logo chamou a mãe e a irmã para ouvirem o restante da conversa.
O pastor e poeta sabia que as mulheres já estavam de prontidão e já dominavam o assunto por detrás da porta. Então, pediu que os dois rapazes esperassem alguns minutos.
Depois de conversar com as mulheres no interior da tenda o pastor retorna e pede aos apressados meninos que aguardem só o tempo de colocar uma roupa que estivesse a altura para a ocasião. Não fosse a milenar vaidade feminina, seis ou sete minutos seriam o bastante. Porém, meia-hora foi necessária para que eles seguissem rumo a sede da fazenda.
A medida que eles caminhavam o silêncio os acompanhava ladeado pela curiosidade de cada um do grupo por saber o que os aguardava na mansão do fazendeiro.
A medida que se aproximavam os convidados de última hora pareciam ensaiar entre si uma combinação sincronizada dos passos de cada um deles; suas mãos entrelaçaram-se como uma corrente protetora que se tornava quase que inquebrável a medida que eles se aproximavam do lugar.
Por mais que o receio de cada um deles tentasse impedi-los de não chegar a tal realidade a grande porteira da fazenda foi aberta. O vigilante permitiu-lhes que entrassem, forçou um sorriso e ainda inclinou a cabeça como forma de mostrar respeito aos quatro reticentes convidados.
Não demorou muito para que percebessem que o anfitrião estava vindo ao encontro deles com passos firmes e lentos. Umas batidinhas a mais no coração de cada um e logo o velho homem estava ali, cumprimentando primeiro as mulheres; em seguida procura ficar frente-a-frente com o filho que raramente via; o homem foi surpreendido por um beijo na mão direita com o qual o rapaz tratou de honra-lo. Era a forma antiga de pedir a benção paternal.
O homem logo procura se recompor para que não fosse dominado pela emoção e estende a mão esquerda para o rumo da “Casa Grande”. Era a forma patriarcal de dizer que todos podiam adentrar ao recinto sem receio algum,
Não demorou para que a família de camponeses subisse as escadas da grande varanda feita de ciprestes. Logo, adentram ao salão onde estavam todos os membros da família do anfitrião, assim como o profeta e seu séquito. A ocasião obrigou que a criadagem da casa providenciassem uma mesa menor para unir a mesa principal já que o número de pessoas era maior do que o habitual. Ao moço foi reservado um lugar no qual fosse visto por todos. Ele ainda não sabia a razão de está ali; percebeu que a atmosfera do lugar era tensa. Havia um ar pesado que se iniciava da respiração de alguns convidados que não disfarçavam o desconforto.
O rapaz e os meios-irmãos pouco se encontravam e nas raras vezes em que esse encontro se deu o pastor foi humilhado a partir do maior até o menor da “Casa Grande” que não aceitavam a sua existência, tratavam-no como se o menino fosse um cão cheio de sarnas, sem medir as palavras amaldiçoadoras eles desejavam que ele morresse e fosse esquecido para sempre. Ali estavam os filhos da casa e o filho que foi gerado de uma aventura entre um senhor e uma serva; todo o inconveniente do passado gerava essa sensação de ar poluído.
O menino jamais foi aceito! Sobrou-lhe a tenda nos fundos da fazenda e a obrigação de cuidar das ovelhas do pai que também era seu patrão. Ele viveria para sempre assim não fosse a ordem dada ao Sacerdote e Profeta-mor da nação que ali assistia e esperava pacientemente o desenrolar das revelações familiares. Samuel só tinha certeza de uma coisa: Não poderia sair dali sem que ungisse o futuro rei de Israel e o rei fora escolhido pela vontade do Eterno. O velho sacerdote já havia feito todas as tentativas possíveis para ungir o rei que sairia dali daquele jantar. Porém, a voz do Eterno não lhe permitira que assim o fizesse. Aos rapazes da casa não foi permitido que recebessem a unção de rei. A ordem divina era que a realeza sairia dali da casa do patriarca belemita.
Horas antes um mal-estar havia se notabilizado naquele ambiente que deixou a todos estarrecidos com as revelações de um homem que além das esposas, fazia particulares com as servas o que gerou toda essa problemática que agora impedia que o trabalho do sacerdote fosse realizado. Nada mais constrangedor! O fazendeiro teria que reconhecer diante de todos que ele tinha um filho que não estava sentado a mesa, porém, era seu filho e precisava se fazer presente ali. Mesmo contra a sua vontade de todos os que viviam na suntuosa “Casa Grande”. Não importava! O que aconteceria ali, naquela sala de jantar seria a vontade do Eterno.
O moço sempre soube de sua situação e tinha ideia da forma como foi gerado. Sua mãe estava sentada à mesa, assistindo a tudo e vivendo um misto de emoções do tipo: vingança e vergonha. As irmãs do moço pouco entendiam sobre a trama que ali se passava. Para a bela Abigail o que chamava a atenção mesmo era o corpanzil do capitão Eliabe o mais velho de todos os rapazes. Mas nem mesmo a beleza impar da menina foi capaz de amenizar o sentimento de ódio que o capitão expelia pelo próprios poros.
Naquela noite o novo rei seria ungido. O Deus de Israel assim o quis. O futuro rei estava presente à mesa. O tempo passaria sem deixar de guardar as nuances dos fatos. Todos os que ali estavam assistindo aquele ritual seriam testemunhas e aos que fosse dado a honra de viver até a hora marcada para tal, veria o pastor de ovelhas subir ao trono de Israel.
O grande momento chegou: O sacerdote pede que o rapaz se incline; o moço obedece e ajoelha-se diante do velho homem; depois de uma breve prece, sente que sobre sua cabeça é derramado um unguento perfumado com sabor de oliva e ameixa. O pastor sentia que o cálice feito de prata era grande e estava transbordando e só deixaria de ser derramado até a última gota quando as orações de Aarão e os cânticos de Miriam fossem entoados. A celebração teria que ser digna da unção de um rei. Era o grande momento! Era o momento real! O pastor de ovelhas que jamais seria reconhecido como um filho legítimo recebia ali diante de todos os convidados a unção de rei pelo profeta-mor da nação de Jeová, Aquela noite entraria para a história da vida do moço que até então era apenas um cuidador das ovelhas.
Ele aprendeu ainda criança a tocar uma harpa caseira que ele mesmo fabricou; escrevia uns versos e de alguns compunha canções. Gostava de dormir em casa nas noites de descanso para brincar com as irmãs e ter boas conversas com a mãe depois de saborear um delicioso jantar feito especialmente para ele. Jamais imaginou que Deus o escolheria. Imaginou que o campo seria seu nascedouro e também seria a sua sepultura. Lembrou-se de um salmo que ainda não conseguira terminar. Algumas frases ainda estavam soltas, porém, outras estavam bem definidas:
– “Preparas-me uma mesa na presença dos meus inimigos, unges-me a cabeça com óleo, o meu cálice transborda….” Nada mais profético!
Ali estava a mesa e seus inimigos estavam presentes assistindo o unção real sendo derramada sobre a cabeça do pastor.
A canção que ele compôs falava também de cálice, de unção. Enquanto o sacerdote derramava sobre sua cabeça o óleo perfumado com cheiro de oliva e ameixa, o pastor chorava e lembrava; chorava e pensava; chorava e agradecia; chorava e soluçava; chorava e tentava sorrir. Não conseguia! A emoção o dominava. Ele não conseguia entender como sua poesia insistia em se tornar tão viva. Jamais imaginou que passaria por tudo aquilo, nunca pensou que seria agraciado por Jeová a ponto de ser ungido o rei de Israel; o rei de seu povo; o homem mais importante do reino do povo de seu Deus.
Depois de uma cerimônia cheia de emoções e tensões o jantar finalmente foi servido. Peixe com amêndoas e suco de tâmaras. O futuro rei ainda lembrava do carneiro com lentilhas e milho maduro que não foi possível saborear por conta do real improviso.
Após o jantar o futuro rei se despede de todos e segue rumo a sua humilde tenda. Despediram-se sem aceitar a oferta de serem conduzidos por alguns camelos que o pai do menino ofereceu.
Ao chegarem em casa perceberam que a noite foi cansativa. O menino, no entanto, não conseguia sequer fechar os olhos.
Seus pensamentos iam da poesia de sua canção até o momento em que o profeta urgiu-lhe a cabeça. Olhando pela janela para o azul celeste que sempre o inspirou, o futuro rei, enfim, encontrou a frase com a qual iniciaria seu mais famoso salmo.
– O Senhor é meu Pastor e não me faltará…(Sl. 23.1)
O tempo passaria e ele se tornaria o rei de seu povo. Teria que enfrentar leões que ousariam atacar seu pequeno rebanho; enfrentaria gigantes arrogantes; passaria pelo ódio incontido de seus irmãos e também teria que enfrentar um rei louco.
O pastor e rei ungido confiava em Deus e tinha a certeza de que até o dia em que recebesse a coroa real ainda enfrentaria as maiores batalhas da vida de um homem. Porém, ele sabia que a sua confiança estava alicerçada no Senhor ao qual ele sempre confiou.
antes que seus olhos fossem cerrados pelo sono real, o rapaz ainda deu conta de cantar a primeira frase de seu Salmo épico:
– O Senhor é o meu pastor e não me faltará…(Sl. 23.1)